Por mais que eu goste de comida e por mais que eu goste de falar de comida, sinto uma grande tristeza ao saber que pouco sei delas. Diante da grande maioria, me sinto uma amiga ingrata, como estivesse diante de pessoas que gosto muito e convivo quase todos os dias, porém delas, sei apenas seus apelidos. Não sei seus nomes, como vivem, de onde vem, como chegaram, não conheço sua família...
É um desperdício pouco notado, cada alimento carrega com ele, muita história e beleza além de suas calorias e valor nutritivo.
E pra começar esse longo, mas divertido caminho de redenção com meus alimentos, começo com uma bela família. Alimentos que, a partir de hoje, serão vistos com outros olhos e saboreados com muito mais reconhecimento. Começo com a Família Alliaceae!!!
É, pois é, eu só os conhecia por apelido, mas são todos "priminhos", a cebola (Allium cepa), o alho (Allium sativum), a cebolinha (Allium fistulosum), o alho da china (ahhh não achei o nominho dele...), e o alho poró (Allium porrum). Que todo eram parentes, não me causou surpresa. O que me espantou foi tamanha a beleza da família em trajes elegantes, que a gente pouco vê:
"Ela entrou, deitou-se no divã e disse:
-Acho que estou ficando louca.
Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura.
-Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto.
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse:
-Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver."
A complicada arte de ver, de Rubem Alves.
(texto extraído do caderno "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004)